terça-feira, 22 de dezembro de 2009

do p.A.Vieira

-"Só uma cousa há que não pode passar, porque o que nunca foi, não pode deixar de ser e tais parece que foram as fábulas que neste mesmo tempo se inventaram e fingiram. Mas se elas não passaram em si mesmas, passaram naqueles casos e cousas que deram ocasião a se fingirem. Na seca universal que abrasou todo o mundo, passou a fábula de Faetonte; no dilúvio particular que inundou grande parte dele, passou a fábula de Deucalião; no estudo com que el-rei Atlante contemplava o curso e movimento das estrelas, passou a fábula de trazer o céu aos ombros; na especulação contínua de todas as noites, com que Endimião observava os efeitos do planeta mais vizinho à Terra, passou a fábula dos seus amores com a Lua. E porque também os nossos vícios, a nossa fraca virtude e a nossa mesma vida passam como fábula; o amor e complacência de nós mesmos passou na fábula de Narciso; a riqueza sem juizo na fábula de Midas; a cobiça insaciável, na fábula de Tântalo; a inveja do bem alheio, na fábula e abutre de Tício; a inconstância da fortuna mais alta, na fábula e roda de Ixião; o perigo de acertar com o meio da virtude e não declinar aos vícios dos extremos, na fábula de Cila e Caribidis; e finalmente a certeza da morte e incerteza da vida, pendente sempre de um fio, passou e está continuamente passando na fábula das Parcas. Assim envolveram e misturaram os sábios daquele tempo o que há com o que não há e o certo com o fabuloso; para que nem o louvor nos desvaneça,nem a calúnia nos desanime, pois os verdadeiro e o falso, a verdade e a mentira, tudo passa."

Sem comentários:

Enviar um comentário