sábado, 31 de julho de 2010

do p.A.Vieira - Os melhores cabelos...

      - " Os melhores cabelos e a pior cabeça, que nunca houve, foi a de Absalão : os cabelos vendiam-se a peso de ouro, e a cabeça nenhum peso tinha. Mais lhe tomara eu o chumbo na testa, que o ouro na gadelha. Também há cabelos, que parecem ouro , e são de prata sobredourada ; e isto é o pior, que têm as cãs, poderem-se tingir. Não assim os cabelos negros, que não admitem outra cor. Por isso a Pastora das Églogas de Salomão, o que louvou nos cabelos do seu Pastor, foi serem da cor do corvo : Comae ejus sicut elatae palmarum, nigrae quasi corvus."   

do p.A.Vieira - Se o discurso...

         - " Se o discurso for largo, facilmente se acomodará a devoção com a paciência. "

do p.A.Vieira -Porque na idade de mancebo...

         - " Porque na idade de mancebo, e de varão, assim como as tentações são mais fortes, assim é mais trabalhosa a resistêmcia  dos vícios, e mais dificultosa  o observação das virtudes. Na primeira idade, que é a dos meninos, aimda os não tenta o mundo ; na última, que é a dos velhos, já os não tenta : e a virtude sem batalha, que nos meninos é inocência, e nos velhos desengano, quanto mais está em paz, e fora da guerra, tanto menos tem de vitória, e de sólida, e forte virtude."

sexta-feira, 30 de julho de 2010

do p.A.Vieira - Assim que não ...

       - " Assim que não é só o vinho o que embebeda. Embebeda a soberba, embebeda a ambição, embebeda a cobiça, embebeda a luxúria, embebeda a ira, embebeda a inveja, e até aos que não têm que invejar embebeda a sua mesma fortuna, como de Cleópatra disse o Poeta : Fortunaque dulei ebria. Por esse modo sem perder a fé bebendo-se docemente os vícios, se adormentam neles os escrúpulos, e se divertem os estíimulos da consciência, como fazia Lutero. Na mocidade esperando pela velhice, na velhice não crendo a morte, e na mesma morte por amor da família, que cá fica, levando o escrúpulo atravessado na garganta, e sendo levados dele aonde já não têm remédio."

do p.A.Vieira - Neste mundo...

       - Neste mundo só o Céu não cresce ; do Céu abaixo assim como todas as outras cousas crescem,  assim crescem os vícios. Cresce o homem, e cresce a inveja ; cresce o animal, e cresce a ira ; cresce a árvore, e cresce a cobiça ; cresce o peixe, e cresce a luxúria ; cresce a ave, e cresce a vaidade e a soberba. E se vós  não venceis os vícios, enquanto são pigmeus, como os vencereis depois que forem gigantes ? Não vos fieis em os veres pequeninos, quando começam."

sábado, 24 de julho de 2010

do p.A.Vieira- " Primeiramente...

          _" Primeiramente nos súbditos não ocorre a dificuldade do acerto na indiferença, ouruesolução do que se há-de obrar ; porque esta só pertence a quem manda, e não a quem só deve obedecer ; sendo privilégio  singular da obediência, que podendo errar quem manda, e errando  muitas vezes, só o que obedece, ainda seguindo esses mesmos erros, sempre acerta. Do mesmo modo não estão expostos os súbditos aquela terrível tentação, em que mete as imagens dos Césares o estar longe deles ; porque se as imagens que os representam estão longe, os que se devem conformar com elas, ainda que elas sejam disformes sempre as têm à vista. Finalmente, o serem imagens, que têm as raízes na terra, tão  fora está de ser inconveniente, que é o que mais convém  a toda a República. Os que nasceram ou se criaram na mesma terra, como as qualidades de cada uma são diferentes, e diferentes os climas e influências do Céu que nelas dominam, e conhecem as inclinações e costumes, ou bons ou viciosos, dos que as habitam, e de tudo têm larga experiência, assim como podem suavemente promover o bem, assim sabem os meios eficazes e mais provados com que se pode obviar o mal. E de todas estas propriedades e notícias, não só importantes, mas totalmente necessárias, carecem os que vêm de novo, e de fora, sem lhes valer, como inexpertos, nenhuma ciência , discurso ou juízo, por agudo e bem instruído que seja. Adão e Eva tinham ciência infusa, e sabendo , como não podiam ignorar, que as cobras não falavam, por informação de uma delas, tendo-os Deus posto no Paraíso para governarem o mundo, o mundo e o Paraíso tudo perderam em poucas horas."

do p.A.Vieira -" Tudo isto...

       _" Tudo isto é necessário a quem há-de retratar, ou transfigurar em si, não outra, nem menos ou menor  sagrada imagem, que a da mesma pessoa real a quem representa. Há-de endireitar, há-se dobrar, há-de ligar, há-de cortar : e como ? Há-de endireitar a intenção, tendo-a sempre muito recta de servir só a Deus e ao rei. Há-de dobrar a vontade, para que sempre se incline,  e siga o juízo e ditames da verdadeira razão. Há-de ligar e atar o apetite, que junto com o poder é muito violento e rebelde, para que se não desenfreie. E, finalmente, se algum destes afectos quiser brotar no que não é decente a tão soberana representação, decotá-lo logo, e cortá-lo para que a não descomponha ; e se acaso se sente por dentro, não apareça fora."

do p.A.Vieira-" Quem há-de governar...

         -"Quem há de governar bem, deixa as suas raízes, e quem há-de governar mal, arranca as dos súbditos, e só trata de conservar as suas."

do p.A.Vieira

      -" O primeiro apólogo, que se escreveu no mundo(que é fábula com significação verdadeira) foi aquele que refere a Sagrada Escritura  no capítulo nono dos Juízes. Quiseram (diz ) as árvores fazer um rei que as governasse, e foram oferecer o governo à oliveira, a qual se escusou, dizendo que não queria deixar o seu óleo, com que se ungem os homens, e se alumiam os deuses. Ouvida a escusa, foram à figueira, e também a figueira não quis aceitar, dizendo que os seus figos eram muito doces, e que não queria deixa a sua doçura. Em terceiro lugar foram à vide, a qual disse que as suas uvas comidas eram o sabor, e bebidas a alegria do mundo, e a quem tinha tão rico património, não lhe convinha deixá-lo para se meter em governos. De sorte que assim andava o governo universal das árvores, como de porta em porta, sem haver quem o quisesse. Mas o que eu noto nestas escusas é que todas convieram em uma só razão, e a mesma, que era não querer cada uma deixar os seus frutos. E houve alguém que dissesse, ou propusesse, tal cousa a estas árvores ? Houve alguém que dissesse à oliveira que havia de deixar as suas azeitonas, nem a figueira os seus figos, nem a vide as suas uvas ? Ninguém. Somente lhe disseram e propuseram que quisessem aceitar o governo. Pois se isso foi só o que lhe disseram e ofereceram, e ninguém lhe falou em haverem de deixar os seus frutos ; porque se escusaram todas com os não quererem deixar ? Porque entenderam, sem terem entendimento, que quem aceita o governo de outros, só há-de tratar deles, e não de si ; e que se não deixa totalmente o interesse, a conveniência, a utilidade, e qualquer outro género de bem particular e próprio, não pode tratar do comum."

sexta-feira, 23 de julho de 2010

do p.A.Vieira -Quem há-de governar bem...

         -" Quem há-de governar bem, deixa as suas raízes,  e quem governa mal, arranca as dos súbditos, e só trata de conservar as suas."

do p.A.Vieira - As imagens...

        -" As imagens não são só obra dos estatuários e pintores, senão também dos jardineiros. Uma das cousas mais curiosas que se vê nos jardins, onda as terras se cultivam mais primorosamente que nesta nossa, são várias figuras de murta, ou de outras plantas formadas com tal artifício, proporção , e viveza de membros, que tirada a cor verde, em tudo o mais se não distinguem do natural que representam. Mas esta mesma representação é muito dificultosa de conservar. As outras  imagens, ou sejam fundidas em metal, ou esculpidas em pedra, ou entalhadas em madeira, ou pintadas nos quadros, ou tecidas nos tapizes, sem mais diligência nem cuidado, sempre conservam e representam a figura que lhe deu o artífice. Porém as que são formadas de plantas, como têm as raízes na terra,, donde recebem o humor, crescendo naturalmente os ramos, facilmente se descompõem, e se fazem monstros. Isto mesmo sucede, ou pode suceder aos que têm o governo da sua própria pátria, e não por outra razão ou fundamento, senão porque têm as raízes na terra. Ali têm  os parentes, ali os amigos, ali os inimigos, ali os interesses da fazenda, da família, da pessoa ; e qualquer destes humores ou respeitos, e muito mais todos juntos, podem descompor de tal sorte a imagem e representação de quem governa, que nem aparência lhe fique do que deve ser, e em tudo obre e seja o contrário do que é obrigado. Se o humor das raízes lhe brotar pelos olhos, não poderá ver as cousas, nem ainda olhar para elas sem paixão, que é a que troca as cores às mesmas cousas, e faz que se vejam umas por outras. Se lhe tomar e ocupar os ouvidos, não ouvirá as informações com a cautela com que as deve examinar, ou ficará tão surdo que as não ouça, ainda que sejam clamores. Se lhe rebentar pela boca, mandará o que deve proibir, e proibirá o que deve mandar, e as suas ordens serão desordens, e as suas sentenças agravos. Finalmente, se sair e vicejar pelos braços, e pelas mãos, que são as extremidades mais perigosas e onde se  experimentam maiores excessos, estenderá os braços aonde não chega a sua jurisdição, e meterá a mão, e encherá as mãos do que não deve tocar."

do p.A.Vieira - Que milagres vistes...

        -" Que milagres vistes nos já mortos ? (que não falo, nem quero que faleis nos vivos).E que serviam as merecidas insignias, ou trofeus dos mesmos milages, com que a verdade sem lisonja, e a memória ainda com horror, lhe adornaria as sepulturas ? Também ali se veriam mortalhas, não de poucos que ressuscitassem, mas de infinitos e sem número a quem tiraram a vida. Também se veriam cadeias, não dos que libertaram do cativeiro, mas das nações e povos inteiros, que sendo livres, fizeram cativos. Também se veriam amarras, não dos navios que salvaram, mas dos que fizeram naufragar e perder, sendo eles no mar e na terra a maior tormenta. Também se veriam muletas, não dos estropeados que sarassem, mas dos que sendo ricos e abastados, os deixaram mendigando por portas, e sem remédio. Também se veriam braços e pés, dos que sendo poderosos, só porque o eram, os enfraqueceu, derrubou, e oprimiu o seu injusto poder, sem mais razão que a violência. Também se veriam, finalmente, os olhos que fizeram cegar com lágrimas, e os corações que afogaram em tristezas, em lástimas, e desesperações : e as línguas que amudeceram sem poderem falar, nem dar um ai, por lhe não seu lícito clamar à Terra nem ainda gemer ao Céu. Estes e outros são os milagres daquelas canonizadas imagens, que chegando aqui despidas e toscas, tornaram estofadas de brocado e ouro, e pintadas com as falsas cores com que enganaram a fama, por ela são recebidas em andores, e frequentadas com romarias."

do p.A.Vieira - A sombra...

       -" A sombra quando o Sol está no zénit, é muito pequenina, e toda se vos mete debaixo dos pés : mas quando o Sol está no oriente, ou no ocaso, essa mesma sombra se estende tão imensamente, que mal cabe dentro dos horizontes. Assim nem mais nem menos os que pretendem e alcançam os governos ultramarinos. Lá onde o Sol está no zénit, não só se metem estas sombras debaixo dos pés do príncipe, senão também dos de seus ministros. Mas quando chegam aquelas ìndias, onde nasce o Sol, ou a estas, onde se põe, crescem tanto as mesmas sombras, que excedem muito a medida dos mesmos reis de que são imagens."

quinta-feira, 22 de julho de 2010

do p.A.Vieira - Nas duas imagens...

        -"Nas duas imagens de Júpiter e Mercúrio, que se atribuíram aos dois apóstolos, temos o exemplo de tudo. A imagem de Júpiter pintava-se com um raio na mão, a de Mercúrio com um báculo entre duas serpentes. E aqui se via bem quão fácil é uma representação, e quão dificultosa outra. Fulminar raios, estremecer o mundo com trovões, escalar torres, derrubar casas, matar homens, fender-se de alto a baixo cedros, ciprestes, enzinhas, e todas as outras violências, e danos que causam os raios, tudo é muito fácil ao poder, em quem abusar dele. Porém meter o bastão entre serpentes discordes e venenosas, e fazer que não se mordam, nem se despedacem : domar ferezas, amansar rebeldias, e reduzir a que vivam conforme a razão os que por natureza e costume não têm uso dela, esta é a dificuldade  grande em toda a parte, e na terra em que estamos, maior que em nenhuma outra. Menos há de cinquenta anos que nesta terra se não conhecia o nome de rei, nem se tinha ouvido o de  lei : e que dificuldade será fazer obedecer e guardar nela as leis dos reis ? Desde  o mesmo tempo se sustentam os que a conquistaram, não dos pastos de animais domésticos, senão da caça e montaria de homens, e que dificuldade será ainda maior manter em paz e justiça  os que só se mantêm da guerra injusta ? Esta é pois a primeira dificuldade geral deste governo ; mas esta a obrigação e  ofício dos que nele representam a imagem do César."

quarta-feira, 21 de julho de 2010

do p.A.Vieira - As imagens que se representam...

       - "As imagens que se representam em si mesmas, ou são de pintura ou de escultura. As de pintura fazem-se com muitos debuxos, muitas cores, muitas sombras, muitos claros, muitos escuros: as de escultura com muito bater, muito polir, muitos cheios, muitos vazios: e umas e outras com muito arte, muita aplicação, muito trabalho. Pelo contrários as imagens que se representam no espelho, elas se pintam sem tinta e se entalham sem ferro, e aparecem perfeitas em um momento sem mais trabalho, ou artifício que uma reflexão natural.. Pois por isso as da majestade se representam no espelho, porque a majestade e o poder, e a ostentação e execução dele é muito fácil ; porém as da bondade, que são as do bem-mandar e bem-obrar, e bem-fazer a todos, representam-se nas outras imagens, ou pintadas ou esculpidas, porque estas são muito difiultosas e trabalhosas, e que requerem muita arte, muita sabedoria, muita proporção, muita regra. As imagens de escultura fazem-se tirando : as de pintura, pondo ; para este tirar, é necessário muito desinteresse : para este  pôr e acrescentar, muita igualdade : e para uma cousa e outra, muita prudência, muita justiça, muita inteireza, muita constância, e outras grandes virtudes, que mais facilmente faltam todas, do que se acham juntas."

do p.A.Vieira - E se para a eleição...

       -  " E se para a eleição de quem há-de governar brutos se requer tanto aparato e prevenção de consultas e conselhos, na sabedoria do mesmo Deus, que será para eleger um homem que Há-de governar homens? O carácter de imagem sua, pô-lo Deus porventura na alma do homem, porque se não há-de entregar o governo a homens sem alma? Sim, mas não só por isso. Não basta que o que houver de governar seja homem com alma; mas é necessário que seja alma com homem. Se tiver alma, e boa alma, não quererá fazer mal; mas se juntamente não tiver actividade e resolução, e talento de homem, não fará cousa boa. Deu-lhe Deus memória, entendimento e vontade: a memória, para que se lembre da sua obrigação; o entendimento para que saiba o que há-de mandar; e a vontade, para querer o que for melhor; e não homens de uma só potência (que por isso fazem impotências) faltando-lhe a memória e o entendimento, só têm má vontade."  

do p.A.Vieira - Ninguém despreze...

       - " Ninguém despreze a vocação e inspiração divina, porque se quando é chamado não quer ir, depois, ainda que queira, não poderá. "

do p.A.Vieira - Chama-nos Deus...

          . Chama-nos Deus para o descanso e para estarmos assentados à sua mesa, e nós queremos antes trabalhar e suar com o mundo, que descansar e regalar com Deus. Tanto podem connosco as aparências do presente, e tão pouco a fé e esperança do futuro. De ninguém  se podia recear menos esta desatenção, que dos mesmos a quem o rei mandou chamar. Mandou chamar lavradores, que são os que foram para a sua lavoura: e mercadores, que são os que foram para a sua negociação. E porque mais lavradores e mercadores, que gente de outro trato, ou de outros ofícios? Porque assim o lavrador, como o mercador, são homens que têm por exercício e profissão acrescentar o cabedal. O lavrador semeia pouco para colher muito: o mercador compra por menos para vender por mais.E por isso mesmo, assim os lavradores, como aos mercadores, os devia trazer à mesa do rei o seu próprio interesse. Que melhor lavoura, que semear na aterra, e colher no Céu? E que maior mercancia, que vender o tempo, e comprar a eternidade? ."

terça-feira, 20 de julho de 2010

do p.A.Vieira - Na Terra tudo são...

         -" Na Terra tudo são soberbas, ambições, invejas, discórdias, contendas, cavilações, engnos, falsidades, traições, violências, e tratar cada um de subir, ainda que seja pela ruínas alheias; e para escapar de todos estes males, maldades e malícias, não há outro lugar seguro e quieto senão o último. Pelo contrário, no Céu tudo é claridade, paz, concórdia, amor, contentamento, bem-aventurança e estimar e gozar-se cada um do bem do outro, como do próprio, e por isso os primeiros lugares de ninguém invejados, nem pretendidos, mas de todos aprovados e venerados, sem receio que os inquiete de dentro, nem perigo que os perturbe de fora, são tão firmes e perpétuos, como os mesmos bens e felicidades que logram."

do p.A.Vieira - O mundo vulgarmente...

        - " O mundo vulgarmente chama-se vale de lágrimas; porém nem todo ele é vale, nem todo de lágrimas. Não é todo vale, porque tem campos, outeiros e montes; e não é todo de lágrimas, porque também é de gostos, delícias e passatempos."

do p.A.Vieira - Porque onde entra a inveja...

        -" Porque onde entra a inveja e a ambição de lugares, não há virtude nem amizade segura; o maior amigo vos há-de desviar, e o mais virtuoso se há-de introduzir."

do p.A.Vieira - As causas naturais...

         - " As causas naturais desta inquietação dos lugares altos, ou são as competências dos que os procuram, ou as invejas dos que os desejam, ou o próprio desassossego dos mesmos lugares, que ainda depois de adquiridos, nem ele aquietam, nem deixam aquietar a quem está neles."  

do p.A.Vieira - Os lugares que dependem...

         -" Os lugares que dependem da vontade e poder alheio, ou os distribui a justiça, ou são indulgências da graça. Para a justiça é necessário o merecimento. para a graça é necessário o favor. E bastam estas duas cousas tão dificultosas de ajuntar? Não bastam. Abel tinha o merecimento e o favor, e o mesmo merecimento e favor foram o motivo de Caim seu irmão lhe tirar a vida. Pois se com o merecimento e com o favor, o lugar que veio a alcançar Abel foi o primeiro entre os mortos, não é melhor ter o último entre os vivos, sem o trabalho de o merecer, nem o perigo de o não lograr? E se isto aconteceu nos tempos em que os homens se matavam sem ferro, e a graça e o favor se alcançava sem ouro, que será no tempo presente? Depois que as dignidades se fizeram venais, os lugares mais se alugam do que se alcançam; e não se dão a quem melhor os merece, senão a quem mais caros os compra. O que se busca nos homens, são os que antigamente se chamavam talentos; e os que hoje têm o mesmo nome, se não estão engastados no mesmo metal, por singulares que sejam, não têm preço. Só o último lugar, porque não tem compradores, se não vende, e por isso só ele se consegue sem cageda, e se logra sem despesa."

segunda-feira, 19 de julho de 2010

do p.A.Vieira - Se quereis ter...

        -" Se quereis ter o melhor lugar de todos, fazei por ser o melhor de todos, e logo o vosso lugar, qualquer que seja, será também o melhor. Mas todos querem melhorar de lugar, e ninguém quer melhorar de vida. Sucede-lhe aos ambiciosos, o que aos peregrinos, diz Sócrates. O peregrino sempre anda mudando de lugar em lugar, e nunca melhora, porque sempre se leva a si consigo: Quia  mirares nihil tibi peregrinationes pradesse, cum te circunferas? Como quereis melhorar de lugar, se vos levais a vós convosco? " 

do p.A.Vieira - " Porque os homens...

          - " Porque os homens são os que dão a bondade ou melhoria aos lugares, e não os lugares aos homens."

do p.A.Vieira - Curou ao hidrópico...

          -" Curou ao hidrópico, e depois tratou de os curar a ele: ao hidrópico, tocando-o com a mão , e a eles pondo-lhes as mãos, e muito bem postas. Não há vício mais descortês, que a soberba, nem mais descomedido, que a ambição. Como  carece da modéstia por dentro, também lhe falta a urbanidade por fora. Não diz o evangelista o lugar que dessem na mesa a Cristo; mas diz que os convidados sem cortesia, nem urbanidade, todos procuravam e ainda contendiam sobre os primeiros lugares. Esta foi a ocasião, e este o ponto da doutrina, por isso moral, e juntamente política. "

do p.A.Vieira - Vós que nas obras...

       - " Vós que nas obras da criação unistes extremos tão opostos como o corpo e espírito : Vós que na obras da redenção unistes  extremos tão distantes como homem e Deus : Vós que nas obras da justificação unistes extremos tão desproporcionados como natureza e graça : com a graça, com a eficácia e com a suavidade desse omnipotente mistério vencei as repugnâncias de nossos afectos, abrandai a dureza de nossos corações, dobrai a resistência de nossas vontades, e quebrantai a rebeldia de nossos vãos e mal entendidos juízos. Domai, abatei, sujeitai, e ponde rendido a vossos pés tudo aquilo que pode impedir a verdadeira concórdia e união deste reino todo vosso ; para que unidos o defendamos, unidos o conservemos, unidos logremos nele os aumentos e felicidades que lhe tendes prometido; e unidos finalmente nos sirvamos, e recebamos de tal modo nesse soberano mistério, que conservando sempre inteira e perfeita unidade em Vós, e connosco, na Terra perpetuamente vos louvemos em união  de graça, e no Céu eternamente vos gozemos em união de glória.."

do p.A.Vieira - " De sorte que...

         - " De sorte que para sermos mais dos que somos (quando assim nos importara) não é necessário multiplicar homens, basta unir corações."

do p.A.Vieira - Porque assim...

        -" Porque assim como é natureza da união, de muitos fazer um ; assim é milagre da união, de poucos fazer muitos."

do p.A.Vieira - Aqui vereis...

         - "Aqui vereis quão fácil é a ruína e quão aparelhada está onde há desunião. Para derrubar um reino e muitos reinos onde há desunião, não são necessárias baterias, não são necessários canhões, não são necessários trabucos, não são necessárias balas, nem pólvora ; basta uma pedra: lapis. Para derrubar um reino e muitos reinos onde falta união, não são necessários exércitos, não são necessárias campanhas, não são necessárias batalhas, não são necessários cavalos, não são necessários homens , nem um homem, nem um braço, nem uma mão : Sine manibus.  Nós temos muito  boas mãos, e o sabem muito bem nossos competidores ; mas se não tivermos união, nem eles haverão mister mãos para nós, nem a nós nos hão-de valer as nossas."

domingo, 18 de julho de 2010

do p.A.Vieira - E adverti...

         -" E adverti que não são necessárias muitas desuniões para uma total ruína. Unido estava o ouro, unida estava a prata, unido estava o bronze, e ainda o mesmo ferro em parte esta unido ; mas bastou uma só desunião para dar com tudo em terra. Faça cada um muito escrúpulo de sua desunião, porque pode ser que dela dependa ou a ruína, ou a conservação da estátua. Cuida a providência política, que os reinos se conservam com ferro e com bronze, e sobretudo com ouro, e com prata ; e é engano. O que sustenta e conserva os reinos é a união. Muito ferro e muito bronze, muito ouro e muito prata tinha a estátua, mas porque lhe faltou a união, não lhe serviram de mais todos esses metais bélicos e ricos, que de acrescentar maior peso para a caída. Ainda não tenho dito a maior admiração. O ouro e a cabeça significava o império dos Assírios : a prata, o peito e os braços significavam o império dos Persas : o bronze da cintura até o joelho significava o império dos Gregos : o ferro do joelho até os pés significava o império dos Romanos ; e bastou uma só desunião para derrubar e desfazer quatro impérios, dos mais valentes, dos mais poderosos, dos mais sábios e dos mais bem governados homens do mundo. Se quatro impérios com uma só desunião se arruínam e acabam ; um reino e não muito grande, dividido em muitas desuniões, que se pode temer dele ? "

do p.A.Vieira - Perdeu-se a estátua de Nabuco...

         - " Perdeu-se a estátua de Nabuco (que bem lhe podemos chamar nossa, pois nos servimos tanto dela). Vejamos quem a perdeu. Estava ela em pé, robusta, ufana e soberba, prometendo-se duração eterna na riqueza, na formosura e na dureza dos metais de que era composta ; arranca-se uma pedra do monte, toca-lhe nos pés de repente, e no mesmo ponto caíu a estátua, desapareceram os metais, e não ficaram dela e deles mais que o lugar e as cinzas. Notável caso ;  mas mais notável o tiro ! Sei eu que a pedra de David foi direita à cabeça do gigante. Pois se a pedra do gigante tirou à cabeça, a da estátua porque tira aos pés ? Não vos lembra que nos pés da estátua estava a desunião entre o barro e o ferro ? Pois por isso o tiro se encaminhou aos pés, e não a outra parte, porque onde havia a desunião, ali estava certa a ruína. Nos corpos inteiros e unidos, como era o do gigante, o melhor tiro é  à cabeça ; mas em corpos onde há desunião, como era o da estátua, o mais seguro tiro é ao desunido, ainda que sejam os pés."

do p.A.Vieira - As obras da natureza...

        _ " As obras da natureza e as da arte todas se conservam e permanecem na união : e todas na desunião se desfazem, se destroem e se acabam. Esta máquina tão bem composta do mundo, com ser obra de braço omnipotente, que é o que  a sustenta e a conserva, senão perpétua e constante união de suas partes ? Não vemos o cuidado vigilantíssimo com que a natureza anda sempre em vela sobre este ponto principal de sua conservação, violentando-se a si mesma (se é necessário) e fazendo subir os corpos pesados e descer os leves, só para impedir os danos daquela desunião a que os filósofos chamam vácuo ? Seis mil anos  há que dura o Universo, sem se sentir, nem ver nele o menor sinal de desunião, e por isso dura tanto :  e quando finalmente chegar o seu fim, a falta, ou a rotura desta união será o último paroxismo de que há-de morrer o mundo."

do p.A.Vieira - Ora, eu tive curiosidade...

         - " Ora eu tive curiosidade de averiguar o nascimento à desunião , e consultando não os vossos nobiliários, senão os livros da verdade, achei nas Escrituras Sagradas, que não há desunião que não seja vil de nascimento, ou de um , ou de dous, ou de três, ou de todos os quatro costados. Toda a desunião quanta há no mundo, e muito mais nas cortes, ou nasce do vício vil da inveja, ou do vício vil da vingança."

do p.A.Vieira- Não reparais...

          -" Não reparais (diz Santo Agostinho) que a matéria da hóstia e a do cálix, a matéria que cobre o corpo, e a que disfarça o sangue, uma e outra é composta de cousas, que sendo primeiro muitas, se fazem uma ? O pão, matéria do corpo, que foi antes, e que é depois, senão muitos grãos de trigo unidos e amassados em uma hóstia ? O vinho, matéria do cálix, que foi antes, e que é depois, senão muitos cachos e muitos bagos espremidos e unidos em um licor ? E porquê, ou para quê ? Para que naquelas paredes de fora vejam os olhos o que crê a Fé por dentro : e para que aquela obra exterior da natureza seja testemunho visível e manifesto da virtude interior e oculta da graça."

do p.A.Vieira - Tenho dito mas...

          -" Tenho dito mas não tenho declarado. O modo (verdadeiramente digno de seus autores) com que a nobreza ilustríssima de Portugal desagrava em públicas demonstrações aquele divino mistério enquanto Sacramento, não é necessário que eu o repita aos ouvidos, e mais quando os olhos o estão lendo em tão elegante escritura. Este paraíso de vista tresladado do Céu à Terra : esta grandeza, esta riqueza, esta majestade : este culto exterior, verdadeiramente divino, de que Deus sempre Se agradou tanto, ainda antes de ter corpo; esta assistência das majestades e altezas : esta frequência de tudo o ilustre e grande da Corte de Portugal; estas adorações e estes obséquios; este zelo e esta piedade; esta fé e este amor, ambos com os olhos abertos: este nome e este instituto de escravos: estes tostões lançados ao peito, como ferretes dos corações: tudo isto são desagravos e satisfações gloriosas daquele sacrossanto mistério; contra a perfídia, contra a cegueira contra a obstinação, contra o atrevimento, contra o desatino herético."

do p.A.Vieira - Onde se conquistam venerações...

             -" Onde se conquistam venerações não se perde autoridade."

sábado, 17 de julho de 2010

do p.A.Vieira - A profissão da história...

         - " A profissão da história é dizer a verdade ; e as histórias dos gentios tiveram feitos heróicos, e casos famosíssimos, como se vê nas dos Gregos e dos Romanos. Pois porque comparam David e Pedro os mistérios sagrados, não às histórias, senão às fábulas? Porque as histórias contam o que os homens fizeram, e as fábulas contam o que os homens fingiram; e vencer Deus aos homens no que puderam fazer, não é argumento de sua grandeza: mas vencer Deus aos homens no que souberam fingir, esse é o louvor cabal de seu poder. Que chegassem as obras de sua Omnipotência, onde chegaram os fingimentos de nossa imaginação! Que chegasse a Omnipotência Divina, obrando, onde chegou a imaginação humana, fingindo! Grande poder! Grande sabedoria! Grande Deus! Isto é o que adoramos e confessamos naquele mistério. As fábulas dos gentios foram imaginações fingidas das maravilhas daquele mistério,e as maravilhas daquele mistério são existências verdadeiras das suas fábulas. Pois se as creram na imaginação, porque as hã-de negar na realidade? Confesse logo o gentio, convencido da razão, a verdade manifesta daquele vere; e diga: Vere est cibus: vere est potus." 

do p.A.Vieira - Permitiu Deus...

           - " Permitiu Deus que o pai da Fé fosse filho da idolatria, porque a idolatria é degrau e sucessão para a Fé. A porta da Fé é a credulidade, como dizem os teólogos, porque antes uma cousa ser crida, há-de julgar o entendimento que é crível  e isto é o que fez a idolatria no mundo, vindo diante da Fé. A idolatria semeou a credibilidade , e a Fé colheu a crença : a idolatria, com as fábulas, começou a fazer os gentios crédulos, e a Fé, com os mistérios, acabou de fazer crentes. Como a Fé é crença de cousas verdadeiras e dificultosas, a idolatria facilitou o dificultoso, e logo a Fé introduziu o verdadeiro. As repugnâncias, que tem a Fé, é o grande, o árduo, o escuro, e o sobrenatural dos mistérios: crer o que vejo, e confessar o que não entendo: e estas repugnâncias já a idolatria as tinha vencido nas fábulas, quando a Fé se convenceu nos mistérios."

do p.A.Vieira - mas hoje, com novidade...

          - " Mas hoje, com novidade, pode ser que nunca ouvida, faremos o mistério da Fé mistério da razão. Sairão a argumentar contra a verdade deste mistério não só os inimigos declarados dela, mas todos os que, por qualquer via, a podem dificultar, e serão sete : um judeu, um gentio, um herege, um filósofo, um político, um devoto, e o mesmo Demónio. Todos estes porão suas dúvidas, e a todos satisfará a razão. E para que a vitória seja mais gloriosa, vencendo a cada a>esSum com suas próprias armas, ao judeu responderá a razão com as Escrituras do Testamento Velho; ao gentio com as suas fábulas ; ao herege com o Evangelho ; aofilósofo com a natureza; ao político com a conveniência; ao devoto com os seus afectos; e ao Demónio com as suas tentações."

do p.A.Vieira - Nas maiores alturas...

           - " Nas maiores alturas sempre são mais ocasionados os precipícios; e como o mistério da Eucaristia é o mais alto de todos os mistérios; como o sacramento do corpo e sangue de Cristo é o mais levantado de todos os sacramentos, previu o Senhor que havia de achar nele a fraqueza e descobrir a malícia maiores ocasiões de o duvidar. Haviam -no de duvidar os sentidos, e haviam-no de duvidar as potências; havia-o de duvidar a ciência, e havia-o de duvidar a ignorância; havia-o de duvidar o escrúpulo, e havia-o de duvidar a curiosidade; e onde estava mais ocasionada a dúvida, era bem que ficasse mais expressa e mais  ratificada a verdade. Por isso ratificou a verdade de seu corpo debaixo das espécies da hóstia : Caro mea vere est cibus ; por isso ratificou a verdade de seu sangue debaixo das espécies do cálix :Et sanguis meus vere est potus."   

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O meu endereço

albertoquadros@netcabo.pt

do p.A.Vieira - Grande testemunho...

           - " Grande testemunho é da presença de Cristo, que a confesse a maior nobreza da Terra; mas não é menor testemunho dessa mesma verdade, que a negue a maior cegueira do mundo. As luzes no nascimento arrastaram as púrpuras dos reis; mas as trevas na morte persuadiram os entendimentos dos filósofos : e assim como daquelas trevas naturais coligiu o Areopagita que era Deus o que padecia ;  assim destas trevas herécticas devemos coligir nós que é Deus, o que ofenderam : Hic esta panis, qui de coelo descendit."

quarta-feira, 14 de julho de 2010

do p.A.Vieira - Sabeis,incrédulos...

         -" Sabeis, incrédulos,  porque não credes ? é porque eu vos digo a verdade. Clara sentença, mas dificultosa. A causa formal objectiva (como falam os filósofos), ou a razão e motivo, por que damos crédito às cousas, é o ser e verdade delas. Assim o ensina Aristóteles, e dita o lume natural, e o obra a experiência de cada um. Pois se a verdade das cousas é a razão e o motivo por que os entendimentos racionais se persuadem a crer : como diz Cristo, que os judeus O não criam, porque lhes dizia a verdade : Si veritatem dico vobis, non creditis? A verdade, que é a razão de crer, pode ser razão de não crer ? Nos entendimentos dos hereges, sim. Anda tão  perturbado o lume racional nos entendimentos dos hereges, e os ditames do discurso tão encontrados com as consequências da razão, que crêem pelos motivos por que haviam de negar. e negam pelos motivos que haviam de crer : e como o motivo de crer, é a  verdade, e o motivo de negar é a mentira ; por isso crêem a mentira, só porque é mentira, e negam a verdade só porque é verdade : Ego autem si veritatem dico, non creditis mihi."

do p.A.Vieira - Quanto a autoridade...

           - " Quanto a autoridade dos mistério perde de respeito, tanto a verdade da fé ganha de autoridade. Encontram-se nos hereges, com uma gloriosa implicação, seus intentos e nossa fé ; porque o crédito que lhe negam, é crédito que lhe dão. Negam-lhe o crédito, porque a não crêem; dão-lhe crédito, porque a acreditam : quanto por eles menos crida, tanto para com todos mais acreditada."

do p.A.Vieira - E que aos ministros heréticos...

           - E que aos ministros heréticos de tanta maldade , nem lhes pasmassem os braços sacrílegos, como ao ímpio Jeroboão, quando levantou a mão para o profeta ! Nem chovesse sobre eles raios, e dilúvios de fogo o Céu, como sobre os soldados atrevidos, que intentaram prender a Elias !  Nem a Terra, indignada, se abrisse em bocas vingativas, e os tragasse vivos, como a Datano, e Abirão! Nem caíssem súbita e temerosamente mortos como Ananias e Safira, aos pés de Pedro ! Nem aparecessem feitos pedaços nesta Igreja, como amanheceu o ídolo Dragão, à vista da Arca do Testamento ! Que tenham tanto atrevimento os homens, e que seja Deus a quem ofendem ! Que tenha tanto sofrimento o ofendido, e que seja Deus quem não resiste ! Suspendem tanto a admiração, e são tão grandes circunstâncias estas, que não só deixam pasmado o juízo que as considera, senão que vistas com olhos humanos, parece que metem em escrúpulos a mesma fé, e querem fique duvidosa a verdade divina deste Sacramento."

terça-feira, 13 de julho de 2010

do p.A.Vieira - O Grego...

        -" O Grego, quando diz Roma, quer dizer a forte : o Hebreu, quando diz Roma, quer dizer a excelsa : o Cristão (acrescentemos nós) quando diz Roma, quer dizer a santa. E será bem que Roma, a forte, não resista a uma tentação tão leve? Será bem que Roma, a santa, deixe a fonte da santidade por seguir a corrente da vaidade? Rir-se-á, e mofará o Grego; rir-se-á, e zombará o Hebreu; chorará, e envergonhar-se-á o Cristão. Pelo que, Roma minha (diz Jerónimo), Serva quod diceris. Se te chamas Roma, sê Roma, sê forte, sê excelsa, sê santa."

do p.A.Vieira - Conheceu o ânimo...

        - " Conheceu o ânimo, mas temeu o génio. Esta é também a razão da minha desconfiança : reverenceio, mas receio : Suspicio sed vereor."

do p.A.Vieira - Para correr ao vale do Sal...

          -" Para correr ao vale do Sal, e do sal que algumas vezes é assaz mordaz e picante: Tudo o que vai ver e ouvir e passatempo e gosto vão destes dias, que outras cousas são senão aquelas  que a antiga Roma chamava Sales, e a moderna Sali? Graças, chistes, motes, facécias, bufonerias, metamorfoses de trajos, equívocos de pessoas, transfigurações dos sexos e da espécie, máquinas jocosas, invenções ridículas, enfim quanto sabe excogitar o engenho, a subtileza, e a ociosidade para mover a riso. Que diria a severidade do vosso Catão, se tal visse? Para isto se vêem cheias as praças, as ruas, os balcões, os teatros : todos a rir, e tudo para rir ! E que sendo em suma tão leve e tão ridícula a tentação, triunfe contudo o mundo de nós, e pareça que triunfa do mesmo Deus ! Senhor, Senhor, quase estava para vos representar a minha dor, que seria maior decência de vossa divina autoridade, retirar-vos ao Sancta Sanctorum de vossos sacrários, que aparecer em público nestes dias. Seja riso aquele riso, mas não seja irrisão vossa. Riam-se os homens do que vêem, e do que fazem, mas não pareça que se riem de vós, pois fazem tão pouca conta de vossa presença. Saibam porém os que assim deixam a Deus, e o trocam ou vendem por tão vil preço, que Deus, como pregou S. Paulo : Non irridetur: e que lá está guardado um Vae de justiça para este riso: Vae vobis, qui ridetis, quia plorabitis ! ."

segunda-feira, 12 de julho de 2010

do p.A.Vieira - Tudo Deus criou vazio...

           - " Tudo Deus criou vazio, mas logo encheu tudo. Vazia criou a Terra; Terra autem erat inanis, et vacua : mas logo a encheu por dentro de tesouros, e por fora de plantas e animais: vazio criou o Céu, mas logo o encheu por dentro de Jerarquias, e por fora de Sol, Lua e estrelas; vazio criou o mar e o ar, mas logo encheu o ar de tanta variedade de aves e o mar de tão infinita multidão de peixes; vazio criou aos primeiros homens como vasos de barro; mas logo os encheu de justiça original e de tantos outros dotes e graças. Tão natural é à divindade, que foi, é, e será sempre a mesma, encher os vasos de suas criaturas: e assim encherá os da nossa necessidade e pobreza, muito melhor que o óleo de Eliseu, por muitos que sejam, vasa vacua non pauca. "  

do p.A.Vieira - Perguntemos agora aos filósofos...

       - " Perguntemos agora aos filósofos, quantas são ao partes da quantidade? As duas opiniões mais célebres concordam em que são infinitas : e só diferem em que género de infinidade; porque uns defendem que são actualmente infinitas, o qual infinito se chama categoremático, outros só admitem que sejam infinitas potencialmente, o qual infinito se chama sincategoremático. E porque esta segunda opinião é a mais comum, e as partes que admite neste género de infinito não podem sem menos infinitas que as do outro, conformando-me com ela, digo assim :: Infinitum est, cujus semper aliquid extra licet accipere. O infinito, como define Aristóteles, é aquilo cujas partes, por mais e mais que se dividam, sempre restam outras mais em que se possam dividir. Estando pois o corpo de Cristo todo em toda a hóstia, e todo em qualquer parte dela, por mínima que seja, e sendo potencialmente na mesma hóstia tantas as partes da quantidade, que, por mais que se divida, sempre se pode dividir mais e mais sem fim, bem se segue, como concluem todos os teólogos, que está o corpo de Cristo no Sacramento, não finita, senão infinitamente."

domingo, 11 de julho de 2010

do p.A.Vieira - Os pequenos não comem...

          -" Os pequenos não comem, nem podem comer os grandes; os grandes, porque podem, são os que comem os pequenos. Por isso os povos estão tão despovoados e tão comidos, e os comedores tão cheios e tão fartos."

do p.A.Vieira - Que homem há...

     -" Que homem há  que desça um degrau de sua autoridade, ou de sua conveniência, ou de sua vaidade, por amor de outro homem ? Deus desce para vos levantar, e os homens derrubam-vos para subir. Que homem há que não derrube, se pode, o que está mais acima, para fazer dele degrau à sua fortuna? Se fordes com Abner, tereis um amigo como Joab, que com um abraço vos tire  a vida para suceder no vosso ofício: se fordes como Mefiboseth, tereis um criado como Ciba, que vos levante um falso testemunho, para herdar a vossa fazenda: se fordes com Esaú, tereis um irmão como Jacob, que com engano vos furte a bênção, para entrar no vosso morgado: se fordes como David, tereis um filho como Absalão, que rebele contra vós os vassalos, para pôr na cabeça a vossa coroa. E se pudésseis ser como Cristo, não vos faltaria um discípulo como Judas que vos vendesse pelo menor interesse, e vos entregasse nas mãos de vossos inimigos, e vos pusesse em uma cruz."

do p.A.Vieira - É questão célebre...

           -" É questão célebre entre os teólogos, se a Esperança reside no entendimento, ou na vontade: os mais defendem que acto da vontade, os menos que é acto do entendimento; mas a opinião mais provável, e para mim sem dúvida, é  que a Esperança compreende ambas as potências, firmando-se com um pé no entendimento, e com outro na vontade. Por isso a Esperança se chama âncora, nome que lhe deu S. Paulo : Ad tenendam propositam spem, quam sicut  ancoram habemus animae tutam,ac firmam. E assim  como a âncora para estar segura, há-de prender de uma e da outra parte, assim a Esperança para se firmar bem na alma, não só há-de estar fundada em uma das potências, senão em ambas juntamente. É a Esperança um composto de desejo e confiança: com a vontade deseja, e com o entendimento confia: se desejara sem confiança de alcançar, seria somente desejo; mas como deseja e confia juntamente, por isso é Esperança. Daqui se segue, que para a Esperança estar inteiramente satisfeita, parte da satisfação há-de pertencer ao desejo, e parte à confiança: ao desejo para o alívio: à confiança para o seguro: e tudo isto tem a  Esperança no Sacramento. Tem seguro para a confiança, porque o Sacramento é penhor: tem alívio para o desejo, porque o mesmo Sacramento é posse; penhor, enquanto o temos fechado naquela custódia; posse, enquanto dentro do peito o temos em nós, e connosco. "
  

sábado, 10 de julho de 2010

do p.A.Vieira - De maneira...

       -" De maneira, que assim como a natureza faz de feras homens, matando e comendo, assim também a graça faz de feras homens, doutrinando e ensinando. Ensinastes o gentio bárbaro e rude: e que cuidais que faz aquela doutrina ? Mata nele a fereza, e introduz a humanidade; mata a ignorância e introduz o conhecimento; mata a bruteza e introduz a razão; mata a infidelidade e introduz a fé e deste modo por uma conversão admirável, o que era fera fica homem, o que era gentio fica cristão, o que era despojo do pecado fica membro de Cristo e de S. Pedro: Occide, et manduca."

do p.A.Vieira - Vede o que faz em uma pedra a arte.

           - " Vede o que faz em uma pedra a arte. Arranca estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, dura, bruta, informe, e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem, primeiro membro a membro, e depois feição por feição, até a mais miúda: ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos: aqui desprega, ali arruga, acolá recama : e fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar."

do p.A.Vieira - Os que andastes...

         -" Os que andastes pelo mindo e entrastes em casas de prazer de príncipes, veríeis naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dous´géneros de estátuas muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza  e resistência da matéria; mas depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão, sempre conserva e sustenta a mesma figura : a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos; mas é necessário andar sempre reforçando e trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa o jardineiro de  assistir, em quatro dias sai um ramo, que lhe atravessa os olhos; sai outro, que lhe descompõe as orelhas; saem dous, que de cinco dedos lhe fazem sete; e o que pouco antes era homem, já é uma confusão verde de murtas. Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da fé. Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados: resistem com as armas, dividam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas uma vez rendidos, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes como estátuas de mármore, não é necessário trabalhar mais com eles. Há outras nações pelo contrário (e estas são as do Brasil) que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas dão estátuas de murta, que em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser muito como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas, uma vez que lhe corte o que vicejam olhos, para que creiam o que não vêem; outra vez que lhe cerceie o que vicejam as orelhas, para que não dêem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez que lhe decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das acções e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural e compostura dos ramos."  

sexta-feira, 9 de julho de 2010

do p.A.Vieira - Porque para ensinar....

         -" Porque para ensinar homens infiéis e bárbaros, ainda que é muito necessária a sabedoria, é muito mais necessário o amor. Para ensinar sempre é necessário amar e saber ; porque quem não ama não quer ; e quem não sabe, não pode : mas esta necessidade de sabedoria e amor não é sempre com a mesma igualdade. Para ensinar nações fiéis e políticas, é necessário maior sabedoria que amor : para ensinar nações bárbaras e incultas, é necessário maior amor que sabedoria."

do p.A.Vieira- O mestre na cadeira...

        - " O mestre na cadeira diz para todos ; mas não ensina a todos.l Diz para todos, porque todos ouvem ; mas não ensina a todos, porque uns aprendem, outros não. E qual é a  razão desta diversidade, se o mestre é o mesmo e a doutrina a mesma ? Porque para aprender não basta só ouvir por fora, é necessário entender por dentro. Se a luz de dentro é muita, aprende-se muito : se pouca, pouco :  se nenhuma, nada."

do p.A.Vieira - Pergunte agora o homem...

        - " Pergunte agora o homem a seu corpo : Corpo meu, para  onde vais? Quo vadis? Pergunte o homem à sua alma : Alma minha, para onde vais ? Quo vadis ? E como o corpo com a evidência dos olhos há-de responder que vai para a sepultura ; e a alma com certeza da fé há-de confessar que vai para o Céu ; à luz deste conhecimento, tão claro e tão forte, não haverá nuvem de tristeza tão espessa e tão escura, que totalmente se não desfaça e desvaneça. Não dissemos pouco há no primeiro discurso, que a tristeza não só atormenta e mata o corpo, senão também a alma ? Pois este é o antídoto invencível, que o corpo e alma têm contra aquele veneno duas vezes mortal ; e esta a arte fácil e  breve, com que o homem se livrará infalivelmente de toda a tristeza, só com perguntar ao mesmo corpo, e à mesma alma, para onde vão : Quo vadis ?"

do p.A.Vieira- Homem triste :...

        -"  Homem triste : se a tristeza te não tirou ainda o uso da razão pergunata-te a ti mesmo para onde vais, Quo vadis ? E esta consideração em qualquer caso ou estado da vida, por triste que seja, não só te servirá de consolação, de alívio, e de remédio, mas te livrará para sempre de toda a tristeza. "

quinta-feira, 8 de julho de 2010

do p.A.Vieira - Estava na ilha de Moro...

           -" Estava na ilha de Moro, e escrevendo a Gôa dizia assim S.Francisco Xavier: < Acho-me nesta ilha, onde não sei a língua dos naturais, mas nem por isso estou ocioso, porque baptizo os inocentes, que não há mister língua, e aos demais procuro ajudar e servir com obras de caridade, que é língua que todos entendem >."

do p.A.Vieira - Quando o padre Trigâncio...

         - " Quando o padre Trigâncio andou pela China, viu que uns homens levavam outros aos ombros :  e advertiu que os levados aos ombros, eram mancos, e os que os levavam, cegos. De sorte que o manco, porque tinha olhos, emprestava os olhos ao cego ; e o cego, porque tinha pés, emprestava os pés ao manco : e deste modo inventou a necessidade de fazer de dous homens defeituosos um homem inteiro. Assim o devemos nós fazer obrigados da mesma necessidade. O sacerdote suprirá o que falta ao irmão, e o irmão o que falta ao sacerdote : o sacerdote sem língua administrando os sacramentos, e o irmão com língua instruindo e ensinando os que os hão-de receber. "

do p.A.Vieira - Porque o verdadeiro...

           - " Porque o verdadeiro e desinteressado amor entre os que se partem, ou ficam, mais atende às felicidades de quem se parte, para alegrar, que às saudades de quem fica, para enternecer. "

do p.A.Vieira - Dizem os filósofos...

         - " Dizem os filósofos, que a admiração é filha da ignorância, e mãe da ciência. Filha da ignorância ; porque ninguém se admira, senão das cousas que ignora, principalmente se são grandes : e mãe da ciência :  porque admirados os homens das mesmas cousas que ignoram, inquirem e investigam as causas delas até as alcançar, e isto é o que se chama ciência. Como filha da ignorância,  me ensinará a mesma admiração a perguntar;  e como mãe da ciência, a responder, posto que tão alta seja a segunda parte, como profunda a primeira. Mas como o Céu hoje com o autor da Graça nos levou todos os tesouros dela, bem podemos esperar que nos não falte com o muito que havemos mister para propor e satisfazer dignamente a dias tão grandes admirações. Ave Maria. "

terça-feira, 6 de julho de 2010

do p.A.Vieira - Quo vadis ?

          - " Quo vadis ? Homem néscio, tu sabes para onde vais, ou o que levas ? Pois esta mesma ignorância e loucura é a de todos ou quase todos  os que se chamam cristãos neste mundo. Se lhes perguntarmos para onde vão, dizem que para o Céu. E se olharmos para os seus cuidados, e para os seus empregos, e para as suas carregações, competindo todos em quem mais há-de carregar e sobrecarregar ; acharemos que todo o seu cabedal empenham naquelas mercadorias, que nenhum preço, nem valor têm no Céu. Cá custam muito, e lá não valem nada. O ouro e a prata não têm lá valor ; porque lá é a pátria das riquezas :  os gostos e os passatempos lá não têm valor ; porque lá é a pátria das delícias : as telas e os brocados lá não têm valor ; porque lá todos vestem de glória : os regalos e sabores esquisitos lã não têm valor porque lá os perpétuos banquetes são a vista de Deus. Que cousas são logo aquelas que no Céu têm grande valor, e grande preço ? São aquelas que lá não há. Os trabalhos, as pobrezas, as fomes, as sedes, as perseguições, os ódios, as injúrias, as afrontas, as calúnias, os falsos testemunhos ; e todas  as outras misérias ou violências que neste mundo se padecem, estas são que no Céu só têm valia ; porque no Céu  todos são impassíveis. Cá é a terra do trabalho e da paciência ; lá é o porto do descanso, e a pátria da impassibilidade. Olhai, olhai bem para o interior desse Céu, e vede o que lá só aparece e resplandece levado cá da Terra. A cruz de Pedro e André : as grelhas de Lourenço ; as setas de Sebastião : as pedras de Estêvão : as navalhas de Catarina : as fogueiras de Tecla : as torqueses de Apolónia : os olhos nas mãos de Luzia. E como estas são as mercadorias que só têm valor e preço no Céu, vede se os que mais carregados e sobrecarregados se vêem destas felicíssimas drogas, tanto mais preciosas, quanto mais pesadas, vêde se têm razão de se entristecer, ou de se alegrar, e de saltar da Terra ao mesmo Céu de prazer. "

do p.A.Vieira - A mesma palavra...

           - " A mesma palavra merces, se é de merces mercedis, quer dizer prémio ; se é de merces mercium, quer dizer mercadorias. E porque o nome do prémio está quase esquecido nesta era, e o da mercancia tão válido e tão subido, parece  que por este segundo será melhor entendido o primeiro. Sendo pois de tanto preço, como acaba de dizer a Suma Verdade, os trabalhos, as pobrezas, as perseguições, as afrontas e as outras penalidades desta vida, ou naturais, ou violentas : e sendo os homens tão cobiçosos, diligentes, e industriosos, em granjear e aumentar mais e mais os próprios interesses, qual é a razão de estarem tão mal reputadas entre eles  as mercadorias deste género, e os avanços delas ? A razão não a pode haver ; mas a sem razão e o engano é porque não lhes conhecem o valor, nem lhes sabem dar o preço. Avaliam-nas como gentios, e não como cristãos ; ou, para falar mais ao certo, avaliam-nas como quem lhes faz a conta na Terra, e não faz conta de que vai para o Céu. "

segunda-feira, 5 de julho de 2010

do p.A.Vieira - Se a tristeza...

         - " Se a tristeza é por ambição e desejo de ser mais, persuade-lhe que não faça caso da lei de Deus, como a Adão e Eva, que por serem como Deus a quebraram. Se a tristeza é por pobreza, persuade-lhe que furte, como a Acã, soldado ilustre, mas pobre, que furtou sacrilegamente a púrpura e regra de ouro nos despojos de Jericó. Se a tristeza é por amor, persuade-lhe a que vença por força e violência o que não pode por vontade, como Ámnon a Tamar, sem separar na dobrada infâmia em ambos igualmente sua. Se a tristeza é por apetite do supérfluo, como a de el-rei Acab, 'persuade--lhe que ao  domínio universal da coroa acrescente a vinha de Naboth, e com tesrtemunho falso jurado, se não houver outra causa. Se a tristeza é por afronta, persuade-lhe a que a vingue, ainda que seja por traição, como a Absalão, que contra as obrigações do sangue, e leis da hospitalidade, matou aleivosamente a Ámnon. Se a tristeza é por inveja, persuade-lhe que derrube o invejado, posto que inocente e benemérito, como Amã, valido de el-sei Assuero, ao fidelíssimo Mardoqueu. Se a tristeza é por saudades, persuade-lhe a que dos retratos dos ausentes faça ídolos, como deram princípio à idolatria de todo o mundo as saudades de Belo. Se a tristeza é por falta de filhos e sucessão como a da outra Tamar mais antiga, persuade-lhe que se lhos não há-de dar Sela seu esposo, os busque em quem lhos pode dar, como ela fez em Mudá, posto que adúltera e incestuosamente. Se a tristeza é por ódio, como a de Saul a David, persuade-lhe que, ingrato às cordas da sua harpa, com o ferro da própria lança o pregue a uma parede. Se a tristeza é por falta de saúde, persuade-lhe que troque as receitas da medicina pelos feitiços da arte mágica, como depois de Jeroboão fizeram todos os reis de Israel, aos quais e ao mesmo reino sepultou deus vivos, e esses são os ossos já então secos e mirrados, que viu Ezequiel há mais de dous mil anos. "
 

do p.A.Vieira - Tal é o estado...

         - " Tal é o estado de um triste, quando a força da sua mesma melancolia o mete no profundo e escuríssimo abismo da desconsolação. Assim como ao egípcio não lhe valia contra as suas trevas nem a a luz do Sol, nem a do fogo ; assim não lhe basta a um triste nem o lume da fé , nem o lume da razão , para vencer as suas, que só lhe são palpáveis. E assim como o egípcio com aquela cadeia sem ferro, mais dura porém que o mesmo ferro, estava atado de pés e mãos ; assim o triste, preso sem grilhões nem algemas à cadeia da sua própria tristeza (contando-lhe sempre os fuzis, a que não acha número), nem tem pés para fugir, nem mãos para resistir às tentações do Demónio, e por isso está sempre exposto, e quase rendido ao pecado. Disse, quase rendido, e disse muito menos do que devera; porque se o Demónio é o que tenta e vence, a força ou fraqueza, que dá a vitória, é a tristeza. "

sábado, 3 de julho de 2010

do p.A.Vieira - A tristeza do coração...

         - " A tristeza do coração não é uma só chaga, ou uma só ferida, senão todas. Sendo chaga e ferida do coração, bastaria ser uma só para ser mortal ; mas como no coração depositou a natureza todo o tesouro da vida, assim no mesmo coração descarregou a tristeza toda a aljava das sua setas. Dali saem todos os espíritos vitais, que se repartem pelos membros do corpo, e dali, se o coração é triste, todos os venenos mortais que os lastimam e ferem, Ferem a cabeça, e perturbando o cérebro lhe confundem o juízo ; ferem os ouvidos, e lhe fazem dissonante a harmonia das vozes ; ferem o gosto, e lhe tornam amargosa a doçura dos sabores ; ferem os olhos , e lhe escurecem a vista ; ferem a língua, e lhe emudecem a fala ; ferem os baços, e os quebrantam ; ferem as mãos e os pés , e os entorpecem ; e ferindo um por um todos os membros do corpo, nenhum há que não adooça daquele mal, que maior moléstia lhe pode causar, e maior pena. Considerai-me um cadáver vivo, morto e insensível para o gosto ; vivo e sensitivo para a dor ; ferido e lastimado, chagado  e lastimoso ; cercado por todas as partes de penas, de moléstias, de aflições, de angústias ; imaginando todo o mal, e não admitindo pensamento de bem ; aborrecido de tudo, e muito mais de si mesmo ; sem alívio, sem consolação, sem remédio, e sem esperança de o ter, nem ânimo ainda para o desejar ; isto é um triste de coração. Os outros venenos, em chegando ao coração, matam ; mas este, como nasce, e se cria no mesmo coração, vai mais devagar em matar, mas não pode tardar muito. "  

do p.A.Vieira - Para uns homens...

         - " Para uns homens parece que vem a morte a pé, para outros a cavalo ; para uns andando, para outros correndo, porque uns morrem devagar, outros depressa ; mas a  Parca que sempre antes do tempo corta os fios à vida, é a tristeza. Vereis a um destes, quando ainda se conta no número dos vivos, descorado, pálido, macilento, mirrado ; as faces comidas, os olhos encovados, as sobrancelhas caídas, a cabeça derrubada para a terra, e a estatura toda do corpo encurvada, acanhada, diminuida. E se ele se deixasse ver dentro da casa, ou sepultura, onde vive como encantado, vê-lo-íeis fugindo da gente, e escondendo-.se à luz, fechando as portas aos amigos, e as janelas ao sol, com tédio e fastio universal a tudo o que visto, ouvido, ou imaginado pode dar gosto. E estes efeitos  tão desumanos, cujos são, e de que procedem ? Sem dúvida da melancolia venenosa e oculta, que a passos apressados leva o triste à morte : A tristitia festinat mors. "

do p.A.Vieira - Os reis...

        - " Os reis, os príncipes, os monarcas, os imperadores, os papas, por mais que o seu estado os tenha levantado tanto sobre os outros homens, nem por isso deixam de chegar lá os nublados, e chuveiros das tristezas. É verdade que as tristezas dos príncipes andam sobredouradas com os resplandores dos ceptros e das coroas ; mas por isso mesmo são maiores e mais pesadas, porque são mais interiores. As tristezas que correm pelos olhos, não são as mais tristes ; as que se afogam no coração, e as que o afogam, essas são as mais sensíveis e penetrantes. Aqueles mesmos resplandores que cá se admiram por fora, são os relâmpagos das grandes tempestades que lá se ocultam e devoram por dentro. Assim que a tristeza é um mal e enfermidade universal, de que ninguém escapa. "

quinta-feira, 1 de julho de 2010

do p.A.Vieira - Determino ensinar hoje...

       - " Determino ensinar hoje a todo o homem em qualquer fortuna, uma arte muito certa, muito útil, muito agradável, e muito breve, que é a arte de não estar triste. Se houvesse uma arte ou remédio universal, que totalmente nos livrasse de tristezas, e que em nenhum caso houvéssemos ou pudéssemos estar tristes não seria muito para desejar, e para todos a quererem aprender ? "

do p.A.Vieira - Saia agora a desigualdade...

         - "  Saia agora a desigualdade dos superiores, ou justa ou injusta, e vejamos que efeitos causa, e pode causar na paz dos súbditos. Se a desigualdade os achar desarmados da paciência, não há dúvida que causará guerra, e cruel guerra : mas se a paciência os armar, e fortalacer contra os golpes da mesma desigualdade, nenhuma haverá tão forte, que possa alterar e descompor  neles a firme e segura paz. "

do p.A.Vieira - Salomão

           - " O rei, a corte, e o reino mais pacífico que nunca viu o mundo, foi o de Salomão. O rei se chamava Salomão, que quer dizer Pacificus : a corte se chamava Jerusalém, que quer dizer Visio pacis : o reino tinha por confins a mesma paz : Qui posuit fines tuos pacem. E com que arte, com que indústria, adquiriu e conservou Salomão para si, para a sua corte, e para o seu reino, uma tão notável e nunca vista paz  ? Com a igualdade ; e porque com esta vara de igualdade media igualmente a todos, por isso foi o seu reino entre todos os reinos, e a sua corte entre todas as cortes, e ele entre todos os reis, o que gozou de mais alta e firma paz. Não havemos mister outro comentador, nem mais claro, nem de maior autoridade, que o mesmo Texto. Depois de dizer :  Virga aequitatis, virga regni tui, acrescenta : Dilexisti justitiam, et odisti iniquitatem. Amava e aborrecia Salomão, mas não tinha mais que um só amor, e um só ódio. E a quem amou ? À justiça : Dilexisti justitiam . E a quem o ódio ? À desigualdade :  Et odisti iniquitatem. E um rei tão amante da justiça, e tão aborrecedor da desigualdade, necessariamente havia de ser o que foi : ele só, e ele por antonomásia o Pacífico. "