quarta-feira, 27 de outubro de 2010

do p.A.Vieira - no sermão de Santo Agostinho

     -"Diz Deus pelo profeta Isaías: se os vossos pecados forem vermelhos como a grã, fazei o que vos eu mando, e serão brancos como a neve, Este texto tem dado grande trabalho aos expositores, e todos concordam em que falou aqui o profeta pela figura que os retóricos chama metonímia, tomando a qualidade  pela pessoa, e o pecado pelo pecador; porque o pecador pode deixar de ser pecador e ser justo, e o pecado nunca pode deixar de ser pecado. Mas deverão advertir que o profeta não fala da substância do pecado, senão dos acidentes, quais são as cores. Não diz que os pecados hão-de deixar de ser pecados, senão que hão-de mudar a cor, e que sendo ou tendo sido vermelhos como a grã, serão brancos como a neve: Si fuerint peccata vestra ut coccinum, quasi nix dealbabuntur. E mudando os mesmos pecados a cor, e vestindo-se de outros acidentes, bem podem ter debaixo deles contrários efeitos, e necessariamente os hão-de causar, quando forem vistos. Tais foram os pecados de Agostinho. Enquanto cometidos tinham uma cor, e enquanto confessados tiveram outra; e por isso enquanto cometidos, como ele mesmo diz, causavam escândalo, e enquanto confessados, causam exemplo. Fez Agostinho exemplo dos seus pecados, publicando-os, sendo que o efeito natural  dos pecados públicos é causar escândalo; mas assim como o hipócrita escandaliza o mundo com a ostentação de virtudes, assim Agostinho edificou a Igreja com a publicação de pecados."

do p.A.Vieira - no sermão de Santo Agostinho

      -"Porque no perdão de absolvição dos pecados, concorrem duas cousas: a remissão da culpa (que por outros termos se chama condenação), e a infusão da graça: pela remissão da culpa ficam os pecados perdoados: Remissae sunt iniquitates: pela infusão da graça, ficam cobertos: Tecta sunt peccata."

do p.A.Vieira - no sermão de Santo Agostinho

       -"Não há cousa mais natural no homem, que esconder e encobrir seus pecados. Naquela famosa disputa que os três amigos de Job tiveram com ele, todo o seu intento ou teima, foi que todos os trabalhos que padecia Job eram em pena de seus pecados, defendendo pelo contrário Job, que padecia inocente. A este fim fez um grande aranzel de todas suas virtudes, e boas obras, concluindo que se tivera pecados, haviam de ser publicos e sabidos porque ele nunca encobrira pecados: Si abscondi, quasi homo, peccatum meum. Nestas palavras tem grande mistério, e é digna de grande reparo aquela exclusiva: Quasi homo: não só diz que não escondeu seus pecados, senão que os não escondeu como homem. Para qualificar Job sua inocência, bastava dizer que não tinha pecados;  para provar que os não tinha com o testemunho público, bastava dizer que nunca os escondera: pois porque acrescenta que os não escondeu como homem: Si abscondi, quasi homo, peccatum meum? Porque não há cousa mais natural ao homem, que esconder e encobrir seus pecados. O pecado é malícia ou fragilidade: o esconder o pecado é natureza. O primeiro homem que pecou foi Adão. E qual foi o primeiro efeito do primeiro pecado? Esconder-se e encobrir-se. Não havia então no mundo outros olhos de que Adão se houvesse de esconder e encobrir, senão os olhos de Deus, e até dos olhos de Deus se quis esconder e encobrir, tanto que pecou. Quando Tamar se foi encontrar com Judas, primeiro fundador e cabeça  do Tribo real, do qual concebeu a Farez e Zarão, diz o Texto sagrado, que vendo-a Judas, suspeitou que era mulher de mau trato: Suspicatus est esse meretricem. E porquê, ou donde o coligiu? Operuerat enim vultum suum, ne agnosceretur: porque levava coberto o rosto para não ser conhecida. Vejam lá as tapadas  as consequências que descobrem, quando assim se cobrem."

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

do p.A.Vieira - no sermão de S. Bartolomeu

     -"Não há cousa que mais engane o juizo dos que elegem, e que mais embarace e perturbe o acerto das eleições que a pele. O merecimento ou capacidade dos homens não se há-de considerar pelo que aparece, e se vê de fora, senão pelo que têm, e pelo que são de dentro. Dispam-se primeiro da pele, e de tudo o que neles é exterior, e então se fará verdadeiro juizo do que merecem."

do p.A.Vieira - no sermão de S. Bartolomeu

     -" Há-de fazer a balança da justiça neste caso o que a balança da cobiça nos seus. Digamo-lo mais claro. Há-de fazer a cobiça do bem público, o que faz a cobiça do bem particular. A quem dá a cobiça as dignidades e a quem as tira? Dá-as a quem vê que tem mais, porque recebe, ou espera mais: tira-as a quem vê que tem menos, porque ou não recebe, ou espera menos. Sabeis, sacerdote virtuoso, sabeis, religioso exemplar, sabeis, ministro zeloso e incorrupto, sabeis, doutor grão letrado, porque fostes excluído? Porque  Inventus es minus habens. O eleto não tinha mais virtude , nem mais letras, nem mais zelo, nem mais talento que vós, mas tinha mais. Quando se busca o que tem mais, pobre do que tem menos! Assim há-de atender ao mais e ao menos a cobiça do eleitor, somente ambicioso do bem público. Exclua aqueles de quem se espera menos, ainda que bons, e eleja os que prometem de si mais, que são os melhores. Este é o único respeito que faz as eleições justas, e não respectivas. Todos os outros respeitos e atenções que respeitam ao bem útil e particular, são peste da república, e tanto mais venenosa quanto mais chegada às veias."

do p.A.Vieira - no sermão de S. Bartolomeu

     _"Não há cousa mais difícil que eleger um homem a outro homem; porque, ou o conhece, ou não. Se o não conhece, elege às cegas; e se o conhece, também: porque se o conhece, ou o ama, ou o aborrece; e tão cego é o amor, como o ódio. Mas é certo que com a paixão, ou ainda sem ela, nenhum homem conhece a outro. O conhecimento do homem é reservado somente a Deus, e ainda n'Ele admirável: Mirabilis facta est scientia tua ex me. Necessário é logo que se peça a Deus, orando, o que o homem nem por si, nem por outrem, pode alcançar, conhecendo."

do p. António Vieira - no sermão de S. Bartolomeu

        -" Temos hoje desvelado a Cristo: Erat pernoctans: e com razão desvelado. Havia de eleger os pastores de sua Igreja; havia de eleger os maiores ministros de sua monarquia: justa e exemplarmente se desvela. Nenhum negócio mais deve tirar o sono a um príncipe, nenhum o deve desvelar mais, que a eleição dos grandes ministros; porque desta eleição dependem todas as eleições, todas as resoluções, todas as execuções, e todo o bom governo e felicidade da república. Aqui se faz, ou se desfaz tudo. Justamente logo se desvela o supremo Rei, justa e exemplarmente o supremo Pastor: Fugiebat somnus ab oculis meis: dizia Jacob, quando pastor de Labão. Se o cuidado das ovelhas tanto desvelava ao pastor, quanto mais deve desvelar ao dono a eleição dos pastores?"

domingo, 24 de outubro de 2010

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

        -"As diligências, as vigias, as cautelas que se fazem contra este mal tão vizinho, são muito prudentes, muito devidas, muito necessárias: mas contra os golpes da espada do Céu, valem pouco os reparos da Terra.No meio do destroço ou carniçaria que ia fazendo a peste de David no mal contado povo de Israel, pôs os olhos no Céu o lastimado e lastimoso rei, e viu um anjo com a espada desenbainhada, e escorrendo sangue, que já ameaçava o golpe sobre a corte de Jerusalém. Ah se Deus nos abrisse agora os olhos como é certo que havíamos de ver a mesma espada gotejando já sangue nosso, e ameaçando mais sangue, e maior golpe sobre Lisboa, e sobre Portugal! O pecado por que Deus castigou com aquela horrenda peste a David, comparado com os nossos pecados, pode-se chamar inocência: mas então não tinha Jerusalèm, nem tinha Israel um S.Roque como hoje tem Lisboa e Portugal, que tivesse mão a Deus no braço da espada.Os grandes males pedem grandes remédios, e um mal tamanho como o da peste, só o podia remediar um tamanho Santo como S. Roque."

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

do p.A.Vieira - no sermão de Santo António

      -"Não sei maior encarecimento da peste, enquanto mal particular e enfermidade de um homem, como era em S. Roque; mas enquanto mal comum e enfermidade  das cidades, das províncias, dos reinos, quem poderá bastantemente considerar, nem compreender as infelicidades, as misérias, as lástimas, os horrores que em si contém a desgraça geral de uma peste? Os portos, e as barras fechadas, e os navegantes alongando-se ao mar, e não só fugindo da costa, mas ainda dos ventos dela: os caminhos por terra tomados com severíssimas guardas: o comércio e a comunicação humana totalmente impedida; as ruas desertas e cobertas de erva e mato, como nos contavam e viram nossos maiores nesta mesma cidade de Lisboa: as portas trancadas com travessas e almagradas: as sepulturas sempre abertas, não já nas igrejas nem nos adros, senão nos campos, e talvez caindo nessas sepulturas mortos, os mesmos vivos que levam a enterrar os outros defuntos: a fazenda adquirida com tanto trabalho, guardada com tanta avareza, estimada com tanta cobiça, já desprezada, e j lançada ou alijada, como na extrema tempestade, não à água, senão ao fogo, e vendo-se arder sem dor: o amor natural do sangue (como todo o outro amor) ou atónito ou esquecido: os irmãos fugindo dos irmãos, os pais fugindo dos filhos, os maridos fugindo das mulheres, e todos querendo fugir de si mesmos, mas não podendo, porque a saída é indispensavelmente vedada, e impossível. A razão e a piedade tem ali cruelmente presos e sitiados os miseráveis, para que se matem antes a pé quedo entre si,e não saiam a matar os outros: mas, oh que dor! Oh que angústia! Oh que aflição! Oh que ânsia! Oh Que violência! Oh que desesperação  tão mortal! E nem ainda para cuidarem os homens, ou pasmarem deste seu estado, lhes dá tempo, nem lugar a morte, Em seis horas matou a peste de David setenta mil de um povo.Vede em tal horror, e tão súbito, se haveria homem que estivesse dentro em si, e se estariam tão mortos em pé os mesmos vivos, como os que caiam mortos? Isto que digo, cristãos, ou isto que não sei dizer, praza a Deus que o ouçamos somente, e que o não vejamos, nem experimentemos. Mas do Algarve a Portugal é menos que de Tânger ao Algarve, e não há tanto mar nem tantos ventos em meio."

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

      -"Mas já que há tantos géneros de laços, porque deseja o zeloso e justiceiro rei, que o laço com que se afogue Judas, seja laço feito da mesa? Porque a mesa é o instrumento natural da vida; e perder a vida pelos instrumentos da vida, é o mais terrível género de morte que se pode imaginar. Formar um laço de cordas, apertar com ele a garganta, fechar a respiração, e matar entre portas a vida, rigor é de morrer trabalhoso, violento, angustiado, terrível; mas alfim é padecer a morte pelos instrumentos da morte: mas assentar-se à mesa para alentar, para sustentar, para recrear a vida, e que o mesmo bocado que meto na boca se me converta em laço na garganta, muito maior rigor, muito maior violência, muito maior tormento, muito maior horror é este de morte, porque é perder a vida pelos instrumentos da vida. Perder a vida pelos instrumentos da vida, e converter-se a mesa em laço, é morrer morte traidora. O bocado que me mata, é traidor, porque com pretexto de me sustentar a vida, ma tira."

do p.A.Vieira - no sermão de Santo António

        -"Irem  ao Inferno os que não são pregadores, é pequena miséria? Grande miséria é, mas em género de desgraça é muito menor. A maior desgraça de todas é não se salvar um homem: mas não se salvar um homem, que tem por exercício salvar aos outros, ainda é maior desgraça que a maior de todas as desgraças. E tal seria a de Paulo, se sendo pregador e ministro da salvação dos outros, ele se não salvasse. Oh quantos desgraçados há destes no mundo, em todos os estados! Quantos prelados há que curam as almas das ovelhas e têm enfermas as suas? Quantos governadores, que guiam e encaminham os povos, e eles se desgovernam e desencaminham? Quantos conselheiros que dão muito bons conselhos aos outros, e eles perdidos e desaconselhados? Caifás era sumo pontífice, ensinou o remédio com que se havia de salvar o mundo, e ele ficou sem remédio. Moisés era governador do povo de Deus, introduziu as Tribos na Terra de Promissão, e ele ficou de fora. Aquitofel era o melhor conselheiro daquela idade, e vivendo tantos príncipes do seu conselho, ele foi tão mal aconselhado, que se matou com o seu. Oh que grande desgraça esta! Todos  a dar remédios a tudo, e ninguém a tomar remédio. Não só nos homens, em que as desgraças são consequência dos vícios, mas até mas mesmas virtudes acho esta desgraça: que maior virtude que a fé? Sem fé ninguém se pode salvar, mas em todos os que se salvam, se perde a fé; porque se não pode conservar com a vista. Que não possa haver Céu sem fé , e que não possa haver fé no Céu? Virtude que mete aos outros no Céu, e fica de fora? Virtude que salva aos outros e se perde a si? (Se nas virtudes pode haver desgraça) desgraçada virtude. Tal era a virtude milagrosa de S.Roque: dava remédio aos outros e ele morreu sem remédio."

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

     -"Nas outras matérias basta não ser pecador, na matéria de lealdade é vecessário ser impecável. Em pontos de lealdade, quem não é impecável, é desleal. Vede se a uma honra tão delicada, e tão escrupulosa, e tão honrada como esta, a ofenderia mui sensivelmente só a imaginação de um possível. A lealdade que não é tão subtil como isto, é mui gosseira lealdade. Há-se de ofender a verdadeira lealdade da suposição de um possível em pensamento; e tão herege há-de ser da minha fé quem ma duvide, como quem ma negue."

domingo, 17 de outubro de 2010

do p.A.Vieira - no sermão de Santo António

      -"... e não há cousa que tanto mude as feições, como a fortuna.Dificultosa cousa parece, que a fortuna faça mudar as feições: mas ainda mal, porque tão provada está esta verdade na experiência de cada dia! Melhorou de fortuna o vosso maior amigo, e ao outro dia já vos olha com outros olhos, já vos ouve com outros ouvidos, já vos fala com outra linguagem: o que ontem era amor, hoje é autoridade, o que ontem era rosto, hoje é semblante. Pois meu amigo que mudança é esta? Quem vos troCou as feições? Que é daqueles olhos benévolos com que me víeis? Que é daquele rosto com que nos víamos sempre? Oh, que mudou de fortuna, claro está, que havia de mudar de feições."

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

        -" Às vezes está a ventura, em se dobrarem as desgraças."

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

      -"Quando os homens pedem aos homens, ainda que sejam reis, pedem uns pobres a outros; só quando pedem a Deus, pedem a quem verdadeiramente é rico.

do p.A.Vieira - no sermão de Santo António

    _" Os homens quando mandam (e mais se têm o mando supremo) ou seja ingratidão natural ou soberania, nem estimam nem pagam os serviços que se lhe fazem, como deveram; porque cuidam que tudo se lhe deve. Pelo contrário, Deus, a quem devemos tudo o que temos e tudo o que somos, nenhuma cousa manda, a cuja remuneração se não obrigue como devedor."

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

  -" O pago que aquele mesmo povo deu a Moisés, foram perpétuas murmurações, perpétuas queixas, perpétuos clamores, perpétuos arrependimentos e saudades do mesmo cativeiro, de que os tinha libertado; e tais dissensões, tais rebeliões, tais injúrias e afrontas, e tais perigos de o apedrejarem e lhe porem as mãos, se se não acolhera ao Tabernáculo, e o mesmo Deus o escondera, que sendo o sofrimento e mansidão de Moisés, por testemunho da mesma Escritura, a maior de todos os homens: Erat enim Moyses vir mittissimus super omnes homines, qui morabantur in Terra: não podendo já com o peso de sustentar aos ombros os mesmos que trazia no coração, pediu finalmente a Deus que ou o descarregasse do governo, ou, quando assim não quisesse, lhe tirasse a vida: Sin aliter tibi videtur, obsecro, ut interficias me. Eis aqui  o que é mandar homens, a quem nem os benefícios obrigam, nem os regalos  abrandam, nem as finezas enternecem, nem os milagres sujeitam, nem pode haver quem os contente e satisfaça"

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

     -"Porque nesta máquina do mundo, entrando também nela o céu, as estrelas têm o seu curso ordenado, que não pervertem jamais: o Sol tem seus limites e trópicos, fora dos quais não passa: o mar com ser um monstro indómito, em chegando às areias pára; as árvores onde as põem não se mudam; os peixes contentam-se com o mar, as aves com o ar, os outros animais com a terra. Pelo contrário o homem, monstro ou quimera de todos os elementos, em nenhum lugar pára, com nenhuma fortuna se contenta, nenhuma ambição nem apetite o farta: tudo perturba, tudo perverte, tudo excede, tudo confunde e como é maior que o mundo, não cabe nele."

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

       -"Falando el-rei Antígono com o príncipe seu filho sobre a administração e governo do reino de que o havia de deixar por herdeiro. admirado o generoso moço de tamanhas obrigações e encargos, refere Eliano, que lhe disse o pai :  Ad non novisti, fili mi, regnum nostrum esse nobilem servitutem? E ainda não sabias, filho meu, que o nosso reinar não é outra cousa que uma servidão honrada? Honrada disse, e com grande juizo. Porque a servidão dos servos, é servidão sem honra, e por isso menor e menos pesada. Mas sobre o peso da servidão haver de sustentar também o da honra, é muito maior sujeição e muito mais pesada carga. É servir à fama e às bocas dos homens, cujos gostos são tão vários e tão estragados, que até o maná os enfastia. Se um homem não pode servir a dous, como disse Cristo, como poderá servir a tantos mil? A cada homem deu Deus um anjo da guarda, e não mais que um homem a cada anjo: e se um anjo que move e governa com tanto concerto e ordem todo o céu das estrelas, não basta para guardar a um homem de si mesmo, e governar ordenada e concertadamente a um homem, entre os outros, como bastará um só homem para conter dentro das leis e manter em justiça a tantos homens? Não sabe o que são homens quem isto não considera e penetra: penetrou-o porém alta e profundamente S.Roque na verdura dos seus anos com o siso e madureza que não vemos em tantas idades decrépitas."  

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

     -" Havemos de supor que nas cortes, por cristãs e cristianíssimas que sejam, não basta  só ter a graça do príncipe supremo, se não se alcança também a dos que lhe assistem."

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

         -" Todos os homens, e mais os cortesãos, andam buscando a felicidade desta vida. E que fazem para a alcançar? Todos ocupados em servir, e todos morrendo por mandar, e por isso nenhum acaba de achar a felicidade que busca."

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

     -"Nenhuma cousa parece que sentem hoje mais os filhos, que a larga vida dos pais. Quem não quer esperar a herdá-los depois da morte, como lhe pode desejar longa vida? Quase todos os títulos que acabaram estes anos na nossa Corte, nasceram únicos, e morreram gémeos; primeiro os lograram juntamente os filhos, do que os deixassem os pais. Uma capa, diz o Espírito Santo, não pode cobrir a dous. Mas querem os homens poder mais do que Deus sabe. Um se cobre com o direito da capa, e outro com o avesso no mesmo tempo. Tão larga lhes parece aos filhos a vida dos pais, que não se atrevem a lhe esperar pela morte."

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

    -"Mas vejo que me diz, ou que me dirá alguém, que há perigos que são impossíveis, e há remédios que são perigosos. Perigos impossíveis não se hão de temer: remédios perigosos, não se hão-de aceitar. Admito no perigo o impossível, admito no remédio o perigoso, e respondo com tudo."

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

        -"Pois se o criado e mais o pai, ambos vigiam,qual é a razão porque o criado quando vigia, espera, e o pai, quando vigia, teme? Porque o pai é pai, e o criado é criado. O criado quando vigia, espera, porque no criado vigia o interesse; o pai quando vigia teme, porque no pai vigia o amor: espera quem serve, teme quem ama."

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

    -"Os remédios , dizem, supõem perigos, os perigos causam temores, os temores argúem desconfianças, e ânimos desconfiados, nem são bens, nem são ânimos. Ora o nosso Evangelho, quando menos, não discorre assim; dos mesmos princípios tira mais honradas consequências. Todo o Evangelho que hoje nos propõe a Igreja, está fundado em temores, e em esperanças: porque como trata da salvação, que é incerta, a esperança anima, o temor acautela. Mas ainda que estes dous afectos, ambos são necessários para obrar ao futuro; eu, contudo, sem ser muito apaixonado do medo, acho melhores raízes ao temor, que à esperança."

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

       -"...e a sarça ardia, e não se queimava. Pois se o fogo é um elemento tão activo, tão consumidor, tão voraz, porque não queimava a sarça? Portava-se a si o fogo, não pelo que era, senão pelo a que vinha. Vinha Deus naquele fogo a libertar os filhos de Israel, como ele mesmo disse: Descendi et libereum eum. E o fogo libertador sustenta-se de si mesmo, não gasta. Fogo em que Deus vem abrasar, como o do sacrifício de Abel, consome; mas fogo em que Deus vem a libertar, como o da sarça de Moisés, não gasta, sustenta-se de si mesmo. Bem o vemos no mesmo libertador, que se sustenta do seu, que era, e não do nosso, sendo que o seu e o nosso , tudo é seu. E para que mais estimemos e agradeçamos esta moderação, notemos que os reis da Terra são como o rei dos elementos, o fogo. Todos os outros elementos, temo-los em casa, sem nos fazerem gastos: a terra, a água, e o ar, não nos gastam nada; o fogo ninguém o teve  em sua casa, senão custando-lhe. Assim são os reis da Terra. E se não bastam os exemplos passados dos que tão abrasados deixaram Portugal, leia-se da Escritura, o que Deus disse por Samuel ao povo, quando teimaram em pedir rei. E que sendo esta a qualidade e condição de um e outro fogo, que não tome para si nada o milagroso que vemos! Que se sustente de si mesmo! É sem dúvida porque está Deus naquele fogo e está nele como libertador: Descendi ut liberem eum." 

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

          -"Não vemos a moderação verdadeiramente de pai da pátria, com que al-rei, que Deus guarde, estreita os gastos de sua real pessoa e casa? Não vemos a liberalidade verdadeiramente real, com que a raínha nossa senhora se priva de suas rendas, e as aplica aos exércitos e fronteiras? Pois se assim se estreita a grandeza dos reis; porque não aprenderá a se estreitar a vaidade dos vassalos? Façamos como libertados, pois eles fazem como libertadores."

terça-feira, 12 de outubro de 2010

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

Sevilha - teatro hacienda

-"Só não posso deixar de dizer e de estranhar muito, que se alarguem agora os cintos, quando era tempo de os estreitar; e que os tragam e queiram trazer muito largos os mesmos que noutro tempo os traziam assaz estreitos. No outro tempo tão estreitos e tão delgados, como todos sabem, e agora tão largos, e não sei se tão inchados, que em nenhuma parte cabem, nem há quem caiba com eles. Cabe-lhes porém, e vem-lhes muito ao justo a frase do soberbo Jeroboão, que são hoje mais grossos pelo dedo miminho do que eram antigamente pela cintura: Minimus digitus meus grossior est dorso patris mei. Levam hoje mais roda em um anel, do que levavam antigamente no cinto. E o pior é, que  no cabo queixosos, e malcontentes. Ora medi, medi os cintos, e vereis  quanto mais largos andais agora, do que andáveis no outro tempo. Antigamente (se  vos lembra) cabíeis nos vossos sapatos, e hoje não cabeis em um coche, e mais outro coche. E sobre tanta diferença, queixas ainda? Estranho isto, mas não me espanto, que quando anda prodigioso o Céu, vêem-se
semelhantes maravilhas na Terra."

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

Sevilha - Junta de Andaluzia

-"E o que mais necessário é que tudo (até agora como a portugueses, agora como a cristãos) é, que as negligências de dentro não desanimem e decomponham as diligências de fora. Quem me dera neste passo as forças, e o espírito que não tenho! É possível que quando estamos recebendo enchentes de benefícios da Divina Misericórdia, não  façamos senão provocar com pecados a Divina Justiça? Que quando devêramos andar humildes e agradecidos a tantas mercês, armemos os favores do Céu contra o mesmo Céu, e façamos guerra a Deus com seus benefícios? Que ainda se guarde pouca justiça? Que ainda se trate pouca verdade? Que agora reinem mais as invejas? Que agora estejam mais em seu ponto as ambições? Que agora, porque Deus está por nós, nos ponhamos nós contra ele? É boa confiança esta? Grandes motivos nos tem dado Deus de grande confiança; mas antes nos quer menos confiados de suas misericórdias, que pouco atentos a nossas obrigações."  

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

Sevilha - junta de Andaluzia

-"O que importa é moderar a confiança com a cautela, e segurar o valor com a vigilância: vigiar, armar, fortificar, exercitar, e trabalhar, que ainda que se tem trabalhado tanto, a empresa foi muito grande, e é necessário mais."

domingo, 10 de outubro de 2010

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

Sevilha - junta de Andaluzia

-"Há cidades em Portugal, que sem estarem tão longe de Castela, como Roma de Cartago, nem as dividir um mar, senão um pequeno rio, e algumas uma linha matemática; tão confiadas estão de si mesmas, que por mais que são mandadas fortificar, não se fortificam, havendo (à maneira dos Espartanos) que onde estão os peitos dos seus cidadãos, não são necessárias muralhas. Há homens em Portugal, que sem terem gastado os anos nas escolas de Flandres, nem campeado nas fronteiras de África, por mais que os mandam ter armas, e exercitá-las, têm por afronta ou por ociosidade este exercício; como se fora contra os foros da nobreza prevenir a defensa da pátria; ou puderam, sem exercitar as armas, entrar naquele número ordenado de gente, que por constar de homens exercitados, se chama exército. É boa confiança esta com o inimigo à porta? É mui demasiada e mui errada confiança: desconfiar por temor, é cobardia; mas desconfiar por cautela, é prudência. Não quero desconfiança que faça desmaiar; desconfiança que faça prevenir, sim. E este segundo modo de desconfiar é mui necessário, principalmente aos Portugueses, cujo demasiado valor os fez algumas vezes tão confiados, que o vieram a sentir mal prevenidos. A moderada desconfiança, não é achaque, senão esmalte da valentia. O valente dizem que há-de ser desconfiado; ao menos um soldado francês sei eu, e na milícia de sua profissão soldado de fama , o qual sempre foi valente ao desconfiado, S. Roque."

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

Sevilha - arquivo das Indias

-"Adorar, e não oferecer, quando o príncipe está em necesside; dobrar os joelhos, e não abrir os tesouros, não é vício de avareza, é crime de infidelidade. Fé, e liberalidade são virtudes sinónimas, e quem está duvidoso no dar, não está firme no crer."

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

      - "Uma razão muito verdadeira é: porque a fé prática, que a Cristo aqui ensinava, não consiste tanto em verdades do entendimente, quanto em liberalidade das mão. Não é mais fiel quem melhor discorre, senão quem concorre melhor."

do p.A.Vieira - no sermão de S. Roque

Sevilha - arquivo das Índias

-" A razão  deste excesso é ; porque os afectos de nossa alma, se são extremamente intensos, ateiam-se pela vizinhança ao corpo, chegando o corpo a padecer por enfermidade, o que a alma padece por sentimento. O calor naturalmente dilata; e como a caridade é um afecto ardente, chega talvez a dilatar-se tanto, que não cabendo na estreiteza onde nasceu, ou rebenta o coração, e morrestes, ou se comunica ao corpo, enfermastes."

sábado, 9 de outubro de 2010

do p.A.Vieira - no sermão das cadeias de S. Pedro

Torre de la plata - Sevilha
-" Porque  providência que não é de todo tempo, de todo lugar, e de todo perigo: providência que uma vez se lembra, outra se esquece; um vez acode, outra desampara; uma vez provê, e outra não provê; não é providência. Assim é, mas não foi assim. Tudo concedo, e tudo nego. Concede que a providência que não é continuada, nem permanente, não é providência. Mas nego que a providência de Cristo, que começou e resplandeceu nas cadeias de Herodes, não se continuasse igualmente, e não permanecesse a mesma, nas cadeias de Nero. E porquê? Porque tanta providência foi não livrar Cristo a Pedro das cadeias de Nero, como livrá-lo das cadeias de Herodes."

do p.A.Vieira- no sermão das cadeias de S. Pedro

--" A navegação do mar alto verdadeiramente é admirável.Não se vê ali mais que mar e céu. E contudo naquela campanha imensa, sem rasto, sem estrada, nem baliza,o piloto leva a nau como por um fio; não só aos horizontes mais remotos deste hemisfério, mas ao porto mais incógnito dos antípodas. E como faz, ou
pode fazer isto o piloto? Governando ele no mar, e sendo governado do Céu. Toma o piloto o astrolábio na mão, mede a altura do polo ou pesa o Sol, como eles dizem; e deste modo o piloto governa a nau, e o Sol governa o piloto. De sorte que o que governa a nau, está no mar, e o que governa o piloto, está no Céu. Pois isto mesmo é o que passa no governo da Igreja.Ainda que Cristo subiu ao Céu, e Pedro ficou no mundo, Pedro da popa da nau governa o mundo,e Cristo do zodíaco do Céu governa a Pedro.    

                                                                                             

do p.A.Vieira - no sermão de Santo Inácio


     -"Tudo o que quiserdes, tudo o que desejardes,tudo o que houverdes mister, achareis neste santo ou neste compêndio de todos os santos. Essa foi a razão por que ordenou a Providência Divina que concorressem e se ajuntassem neste grande exemplar tanta diversidade de estados. de exercícios, de fortunas. Nasceu fidalgo, foi cortesão, foi soldado, foi mendigo, foi peregrino, foi perseguido, foi preso, foi estudante, foi graduado, foi escritor, foi religioso, foi pregador, foi súbdito, foi prelado, foi legislador, foi mestre de espírito, e até pecador foi em sua mocidade; depois arrependido, penitente e santo. Para quê? Para que todos achem tudo em Santo Inácio: Omnibus omnia factus sum. O fidalgo achará em Santo Inácio uma ideia de verdadeira nobreza: o cortesão, os primores da verdadeira polícia: o soldado, os timbres do verdadeiro valor. O pobre achará em Santo Inácio, que o não desejar é a mais certa riqueza: o peregrino, que todo o mundo é pátria : o perseguido, que a perseguição é o carácter dos escolhidos: o preso, que a verdadeira liberdade  é a inocência. O estudante achará em Santo Inácio o cuidado sem negligência: o letrado, a ciência sem ambição: o pregador, a verdade sem respeito: o escritor, a utilidade sem afeite. O religioso achará em Santo Inácio a perfeição mais alta: o súbdito a obediência mais cega: o prelado, a prudência mais advertida: o legislador as leis mais justas. O mestre de espírito achará em Santo Inácio muito que aprender, muito que exercitar, muito que ensinar, e muito para onde crescer. Finalmente, o pecador ( por mais metido que se veja no mundo e nos enganos de suas vaidades) achará em Santo Inácio o verdadeiro norte de sua salvação: achará o exemplo mais raro da conversão e mudança de vida: achará o espelho mais vivo da resoluta e constante penitência: e achará o motivo mais eficaz da confiança em Deus, e na sua misericórdia, para pretender, para conseguir, para perseverar, e para subir e chegar ao mais alto cume da santidade e graça com o qual se mede a Glória."
 
 







                                                       

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

do p.A.Vieira - no sermão de Santo Inácio

        . "O melhor retrato de cada um é aquilo que escreve. O corpo retrata-se com o pincel, a alma
alma com a pena. Quando Ovídio estava desterrado no Ponto, um seu amigo trazia-o retratado na
pedra do anel, mas ele mandou-lhe os seus versos, dizendo que aquele era o seu verdadeiro retrato:
Grata tua est pietas, sed carmina maior imago, sunt mea, quae mando. Séneca, quando lia as
cartas de Lucílio, diz que o via : Video te mi Lucili, cum maxime audio. E melhor autor que estes,
Santo Agostinho, disse altamente, que enquanto não vemos a Deus em sua própria face, o podemos   ver como em imagem nas suas Escrituras: Pro facie Dei, pone interim Scripturam Dei. "