quinta-feira, 21 de outubro de 2010

do p.A.Vieira - no sermão de Santo António

      -"Não sei maior encarecimento da peste, enquanto mal particular e enfermidade de um homem, como era em S. Roque; mas enquanto mal comum e enfermidade  das cidades, das províncias, dos reinos, quem poderá bastantemente considerar, nem compreender as infelicidades, as misérias, as lástimas, os horrores que em si contém a desgraça geral de uma peste? Os portos, e as barras fechadas, e os navegantes alongando-se ao mar, e não só fugindo da costa, mas ainda dos ventos dela: os caminhos por terra tomados com severíssimas guardas: o comércio e a comunicação humana totalmente impedida; as ruas desertas e cobertas de erva e mato, como nos contavam e viram nossos maiores nesta mesma cidade de Lisboa: as portas trancadas com travessas e almagradas: as sepulturas sempre abertas, não já nas igrejas nem nos adros, senão nos campos, e talvez caindo nessas sepulturas mortos, os mesmos vivos que levam a enterrar os outros defuntos: a fazenda adquirida com tanto trabalho, guardada com tanta avareza, estimada com tanta cobiça, já desprezada, e j lançada ou alijada, como na extrema tempestade, não à água, senão ao fogo, e vendo-se arder sem dor: o amor natural do sangue (como todo o outro amor) ou atónito ou esquecido: os irmãos fugindo dos irmãos, os pais fugindo dos filhos, os maridos fugindo das mulheres, e todos querendo fugir de si mesmos, mas não podendo, porque a saída é indispensavelmente vedada, e impossível. A razão e a piedade tem ali cruelmente presos e sitiados os miseráveis, para que se matem antes a pé quedo entre si,e não saiam a matar os outros: mas, oh que dor! Oh que angústia! Oh que aflição! Oh que ânsia! Oh Que violência! Oh que desesperação  tão mortal! E nem ainda para cuidarem os homens, ou pasmarem deste seu estado, lhes dá tempo, nem lugar a morte, Em seis horas matou a peste de David setenta mil de um povo.Vede em tal horror, e tão súbito, se haveria homem que estivesse dentro em si, e se estariam tão mortos em pé os mesmos vivos, como os que caiam mortos? Isto que digo, cristãos, ou isto que não sei dizer, praza a Deus que o ouçamos somente, e que o não vejamos, nem experimentemos. Mas do Algarve a Portugal é menos que de Tânger ao Algarve, e não há tanto mar nem tantos ventos em meio."

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